Um dos grandes desafios para aqueles que analisam textos da Torá com sobriedade, considerando os comentários clássicos, seria reaprender a ler estes materiais, sem os "filtros" da doutrinação.
A necessidade de reaprender a ler, para poder ler com competência, mostra que a habilidade de leitura é uma via de mão dupla. Em primeiro lugar, a maioria dos comentários clássicos estão reagindo a questionamentos ou dificuldades encontradas no texto pelos antigos, de modo tal que, não podem ser apreciados adequadamente, sem que já tenha sido entendida, qual era a questão em pauta na época dos comentaristas.
Nechama Leibowitz, em particular, destacou o motivo pelo qual um comentarista tomava uma posição e um outro discordava; algo que apenas seria compreensível, a partir de um lugar de apreciação dos problemas, que eles estivessem tentando resolver. Sem tal conhecimento, o comentarista estaria respondendo perguntas que o leitor não fez...
A outra necessidade de aprender a reler tudo seria, para se poder apreciar o próprio sentido do texto. O que o texto propriamente dito, estaria realmente tentando dizer, antes dos comentaristas?
Poderíamos treinar nossos sentidos para 'ouvir tal voz' como se fosse?
Vejamos um método para isso:
Fugindo de seu irmão Essav, a personagem Iáacov encontra um lugar para repousar sua cabeça para descansar numa certa noite.
Seu sono, no entanto, foi perturbado por um sonho com imagens misteriosas e uma promessa do Divino:
(15) Lembre-se, estou com você: vou protegê-lo onde quer que vá e o trarei de volta a esta terra. Não vou deixá-lo até que tenha feito o que prometi a você.
Pela manhã, Iáaacov acorda e faz uma promessa, um voto, e essa promessa seria objeto de intensa controvérsia entre os comentaristas tradicionais.
Duas questões estão no centro dessa controvérsia, uma filosófica e outra técnica:
Do ponto de vista filosófico, o debate gira em torno do fato de que Iáacov pareceu fazer uma promessa condicional ao Divino. Ele disse, que "se a Divindade, fizesse "X", então Iáacov faria "Y".
Isso, por si só, foi considerado, de certo modo problemático, até olharmos de perto e descobrirmos que a condição que Iáacov estabelece era, precisamente, a mesma coisa que a Divindade lhe havia prometido, durante o sonho — que estaria com ele.
Parece que Iáacov estava questionando se o Divino cumpriria ou não, a promessa, uma concepção que muitos comentaristas clássicos, se recusaram a aceitar.
[Note a formulação desta pergunta de Abravanel e a discussão de Nechama Leibowitz em Iyyunim Besefer Breishit [hebraico], WZO, 1975]
Na parte técnica da análise, o voto de Iáacov apresenta um problema gramatical significativo, que não é facilmente resolvido.
Em outros idiomas, promessas são tipicamente colocadas no sentido de que, se pronuncia um "se..." para se declarar um "então...".
Em hebraico, por outro lado, não existem, nesses casos, um termo para "então". Consequentemente, muitas vezes, não fica claro quando começa a parte do "então" (ou seja, da condição em que se cumpre o acordo), especialmente em casos como o nosso, que apresentam uma série de declarações conectadas pela letra ו vav (o chamado, vav conjuntivo).
Essa letra pode ser entendida como "e" ou como "então" dependendo do contexto, tornando o seguinte pronunciamento ambíguo e por isso, complexo:
(כ) וַיִּדַּ֥ר יַעֲקֹ֖ב נֶ֣דֶר לֵאמֹ֑ר אִם־יִהְיֶ֨ה אֱלֹהִ֜ים עִמָּדִ֗י וּשְׁמָרַ֙נִי֙ בַּדֶּ֤רֶךְ הַזֶּה֙ אֲשֶׁ֣ר אָנֹכִ֣י הוֹלֵ֔ךְ וְנָֽתַן־לִ֥י לֶ֛חֶם לֶאֱכֹ֖ל וּבֶ֥גֶד לִלְבֹּֽשׁ׃ (כא) וְשַׁבְתִּ֥י בְשָׁל֖וֹם אֶל־בֵּ֣ית אָבִ֑י וְהָיָ֧ה יְהֹוָ֛ה לִ֖י לֵאלֹהִֽים׃ (כב) וְהָאֶ֣בֶן הַזֹּ֗את אֲשֶׁר־שַׂ֙מְתִּי֙ מַצֵּבָ֔ה יִהְיֶ֖ה בֵּ֣ית אֱלֹהִ֑ים וְכֹל֙ אֲשֶׁ֣ר תִּתֶּן־לִ֔י עַשֵּׂ֖ר אֲעַשְּׂרֶ֥נּוּ לָֽךְ׃
(20) Iáacov então fez um voto, dizendo: “Se Elohim permanecer comigo, se Ele me proteger nesta jornada que estou fazendo, e se me der pão para comer e roupas para vestir, (21) e, se eu voltar são para a casa de meu pai - então, o HaShem será meu Elohim. (22) E esta pedra, que pus como coluna, será a morada de Elohim; e de tudo o que me deres, reservarei um décimo”.
A determinação do ponto de virada no pronunciamento de Iáacov produz diferenças dramáticas, tanto no entendimento de quais eram as expectativas de Iáacov sobre a Divindade, quanto no que ele estava "oferecendo" ao Divino em troca.
No mínimo, Iáacov esperava que o Divino cumprisse a promessa do sonho, em troca do que, Iáacov voltaria à sua terra ancestral, adotaria então, o HaShem como seu Elohim, construiria a chamada "casa de El", e daria a décima parte de tudo o que tivesse.
No máximo, Iáacov esperava que a Divindade o fizesse voltar para casa, mostrasse a Iáacov, algum sinal de proteção divina, e demonstrasse visivelmente, que as dedicação de Iáacov foi aceita – somente então, Iáacov concordaria em dar um décimo de tudo, de volta ao divino.
Devemos, no entanto, pausar e reexaminar os acontecimentos daquela noite em um contexto narrativo mais amplo.
[Enquanto existem, pesquisadores que dividem as cláusulas "se" das que contém "então", a sugestão seria que uma leitura literária/humanista do contexto, produziria uma conclusão específica.]
O envolvimento de Iáacov em enganar seu pai e "roubar" a bênção de seu irmão, muda sua vida para sempre. Iáacov é exilado de sua casa por causa daquilo, sendo forçado a fugir de mãos vazias da ira de seu irmão. Ele perde tudo – a proteção de sua amada mãe, a confiança de seu pai, seu irmão, e possivelmente até mesmo sua futura herança.
Emocionalmente exausto de sua provação e fisicamente esgotado de sua viagem, Iáacov repousa sua cabeça para descansar a noite. A narrativa nos diz que ele cerca sua cabeça com pedras, possivelmente para se proteger de animais.
[O termo מראשותיו é constantemente interpretado, como se significasse "abaixo de sua cabeça". Mas, tal interpretação seria um erro de tradução. Isso pode ser visto, por exemplo, em Shmuel Alef 26 : 7. E existe um paralelo, no qual o pé é substituído pela cabeça, no termo מרגלותיו, visto em Rut 3 : 4 - 8]
Seguindo a visão de Iáacov da escadaria com os mensageiros, a Divindade aparece para Iáacov e promete abençoá-lo com a bênção de Avraham. Isso era necessário, dentro da construção da narrativa, porque não estaria claro ao leitor, que a bênção que ele teria "adquirido" seria significativa. Essa primeira mensagem, seria algo de longo prazo, estabelecendo o status de Iáacov como herdeiro do pacto.
Mas, a Divindade adiciona outra promessa, uma de curto prazo, assegurando a Iáacov que ele receberia proteção divina, até que completasse sua viagem e retornasse para Haran.
Nesse ponto da visão noturna, Iáacov acorda, supostamente no meio da noite, apavorado. Ele estava dormindo em um lugar sagrado, o local chamado na narrativa de "casa Divina" (Beit El), algo que ele interpretava, como se fosse a própria "porta" daquilo que era imaginado no mundo antigo como "os céus" flamejantes, nos quais nenhum ser vivo poderia sobreviver.
Parece, pelos versos, que ele volta a dormir, apesar dessa apreensão, e acorda normalmente quando amanhece (28 : 18).
Nesse ponto da narrativa, Iáacov erige e unge um monumento, nomeando o lugar de "Beit El", fazendo então, seu voto.
Perceba que, fazendo uma leitura cuidadosa, mudamos nossa compreensão da narrativa.
Assim como alguém assustado, acordado por um sonho temeroso, Iáacov acordou no meio da noite. Pela manhã, no entanto, não fica claro se o sonho era verdadeiro ou não.
O terror imediato se foi, mas havia perguntas persistentes. a divindade realmente tinha vindo até ele no meio da noite ou aquilo foi apenas um sonho comum?
Não há indicação anterior no texto de que Iáacov teria qualquer tipo de encontro com o Divino; Aquilo foi provavelmente a primeira experiência, indicado até pelo "terror" resultante.
E foi assim, com Shmuel (Shmuel alef 3), onde num primeiro momento, não havia certeza da natureza daquela experiência.
Aquilo teria sido, um produto de sua própria imaginação, refletindo seus medos e esperanças, ou era algo real de algum modo?
Com dúvidas, Iáacov ergue seu monumento, unge-o, e declara seu voto condicional. O sentido desse voto deve ser claro, agora.
Se aquilo foi uma experiência real com o divino, e o Divino realmente fizesse as coisas que Iáacov ouviu no sonho (pois, só o acontecimento concreto comprovaria isso), então ficaria claro para ele, que aquela tinha sido uma experiência real com o Elohim e não algo por ele imaginado. Aquilo seria considerado uma visão profética. E teria sido por isso que a condição de Iáacov, expressava precisamente as coisas que ele ouviu que foram prometidas para ele.
Isso se torna a chave interpretativa, para resolver a ambiguidade de onde a condição de Iáacov termina, e sua ação começa. Tudo o que o leitor precisaria fazer, seria igualar as promessas noturnas atribuídas ao divino, com o voto matinal de Iáacov.
[A única anomalia textual então, seria a adição de Iáacov dentro de seu voto ao Divino, para lhe dar pão e roupas. A explicação mais razoável para essa adição seria que, estes itens simbolizam uma expressão profunda da vulnerabilidade de Iáacov – sua viagem apressada o deixou sem essas necessidades básicas. Para Iáacov, essa seria uma extensão da promessa Divina de protegê-lo em sua jornada.]
Essas coisas que a Divindade promete, e só essas, seriam parte da condição de Iáacov para saber se sua experiência foi real ou não. Todo o resto seria o que Iáacov jurava fazer em seu compromisso de reconhecimento do Divino.
[A única ambiguidade que resta na narrativa, diria respeito à afirmação: "e/então o HaShem será Elohim para mim". Isso poderia ser lido como, "se tudo o acima se tornar realidade, então ficará claro que esta experiência, o HaShem" é uma experiência que eu tenho, é Elohim, para mim". Assim, o Divino não é uma ideia para certa pessoa "aceitar", mas uma experiência para cada um buscar ter.
