POLÊMICAS E POSICIONAMENTOS POLÍTICOS, NO SIDUR
Neste artigo, o rabino Gavin Michael propõe que a seção central do serviço Shaharit (a reza matinal), conhecida como Pessukei D'Zimrá (versos de louvores) - incorporada ao Sidur (o livro de rezas) apenas por volta dos séculos X a XI (sim, não existia antes) - estava relacionada ao declínio e eventual morte do cargo de Resh Galuta (Exilarca), ocorrendo naquela mesma época.
A pessoa com o título de Resh Galuta tinha poderes religiosos, políticos e sociais avassaladores, refletindo de fato, o status de um "rei judaico" como se fosse. E nem todo mundo estava feliz com isso.
O teor geral dos Pessukei D'zimrá (essencialmente, sendo as últimas seis canções do Sefer Tehilim) é um ato poético de rebelião contra Autoritarismos, e uma expressão que minimizava o papel da monarquia, e direcionava o foco, em vez disso, para uma ideia de reinado decadente. Em outras palavras, aquelas canções foram interpretadas como uma reação contra a intervenção e intercessão autoritária humana, em uma ideia teológica que se supunha monoteísta, mas na prática era monolátrica (por meio do culto aos rabinos, ou, culto ao líder).
Simplificando, neste estudo, o rabino Michael investiga especificamente as seis últimas canções do Sefer Tehilim, escolhidas para inserção num Sidur que já estava bem estabelecido, naquele último momento da história judaica tendo uma figura de autoridade, com um "rei". Este ato teria sido, em si mesmo, uma “reconstituição” do motivo pelo qual canções deste tipo foram instituídas no rito, para começo de conversa, quando a monarquia bíblica paralela e original, também estava em declínio...
Sobre a questão da ordem exata das nações do Sefer Tehilim, o Midrash Tehilim escreveu que:
...זה שאמר הכתוב (איוב כח יג) לא ידע אנוש ערכה. א"ר אלעזר לא נתנו פרשיותיה של תורה על הסדר (שאלמלא) נתנו על הסדר כל מי שהוא קורא בהן מיד היה יכול לבראות עולם ולהחיות מתים ולעשות מופתים לפיכך נתעלם סידורה של תורה וגלוי לפני הקב"ה...רבי יהושע בן לוי ביקש לישב על הספר הזה ולסדרו יצאת בת קול ואמרה לו אל תפיחו את הישן
Quanto à ordem exata dos Tehilim de David, as Escrituras disseram: "O homem não conhece a sua ordem" (Ióv 28 : 13). O rabino Eleazar ensinou: As seções das Escrituras não estão organizadas em sua ordem adequada. Se estivessem em sua ordem apropriada, qualquer pessoa que os lesse seria capaz de criar o universo, reviver os mortos e realizar outros sinais... Portanto, a ordem só é conhecida pelo Santo - bendito seja... O rabino Iehoshua ben Levi uma vez tentou organizar o Sefer Tehilim em sua ordem apropriada, e uma voz celestial protestou, dizendo: Não desperte os que dormem...
No entanto, o mesmo Midrash menciona rabinos que tentaram e expuseram a tal "ordem"...
TEHILIM COMO SUTIL PROTESTO CONTRA A IDEIA DE MONARQUIA
Embora a monarquia dos reis davídicos certamente pareça ser um assunto chave dos Tehilim, há um elemento silencioso e subversivo que é discernível dentro da forma geral ou final das canções, como as temos hoje.
A ordem dos cinco livros de Tehilim, quando lidos sincronicamente, parece mover-se da veneração ou glorificação do rei, para as proclamações posteriores de sua irrelevância, à medida que mais espaço é lentamente criado para a ideia da Divindade ser apresentada como o rei de reis.
[Em um nível mais técnico, podemos atentar ao Tehilim 2 - 89 (ou seja, os livros I, II e II) sendo considerados por alguns estudiosos, como uma coletânea anterior, e Tehilim 1 e os livros IV e V considerados uma coletânea posterior. No entanto, as duas coleções são paralelas no sentido de que ambas começaram com um grande elogio ao rei (Tehilim 2 e 110) e se moveram em direção a uma imagem da realeza mais negativa, à medida que os livros progridem. Como este artigo é baseado numa leitura sincrônica (literária), e não uma leitura diacrônica (histórica), as idéias são baseadas em “fluxos” gerais, “temas” e “padrões”, aparentemente presentes na forma final das canções.]
Há também um movimento geral de lamento a louvor ao Divino, conforme a pessoa avança através dos livros. Assim, em termos de número de canções em cada gênero de lamento e louvor, surgerindo os seguintes padrões:
Livro I : 59% lamento = 24 of 41 tehilim a 20% elogio
Livro II: 65% lamento = 20 of 31 tehilim a 19% elogio
Livro III: 47% lamento = 8 of 17 tehilim a 35% elogio
Livro IV: 24% lamento = 4 of 17 tehilim a 29% elogio
Livro V: 23% lamento = 10 of 44 tehilim a 52% elogio
E à medida que se move, pesquisando sistematicamente desde o lamento ao louvor, simultaneamente notamos uma apresentação elevada da monarquia, progredindo para uma representação menos do que gloriosa, e mais de um foco no divino como o Rei.
[Quanto às referências ao rei David nos sobrescritos, a divisão é a seguinte: Livro I: 93% (37 canções de 41) Livro II: 58% (18 canções de 31) Livro III: 6% Um canção de 17) Livro IV: 12% (Duas canções 17) Livro V: 32% (14 canções de 44). Assim, os livros I, II e V tiveram mais sobrescritos 'davídicos' do que os livros III e V; nos quais o rei foi gradualmente retratado em termos menos gloriosos, no entanto, sendo baseado mais no conteúdo (como o rei era descrito) do que no número de menções.
[Note que: à medida que percorremos os textos, uma característica dos Tehilim (e da poesia bíblica, e na verdade do hebraico bíblico em geral) é o sentido flexível dos tempos verbais. Assim, como um exemplo do Tehilim 30 : 11: שְׁמַע־יְהֹוָ֥ה וְחׇנֵּ֑נִי יְ֝הֹוָ֗ה הֱֽיֵה־עֹזֵ֥ר לִֽי - “Ouve, HaShem, e tem piedade de mim; HaShem, seja minha ajuda!”
Esta frase tem um duplo sentido, pois pode se referir a um pedido de ajuda no futuro ou pode ser uma expressão de gratidão pelo passado, deixando em aberto a diferença entre súplica e agradecimento.
[Hakham, A., 2003, The Bible: Psalms; with the Jerusalem Commentary, vol. 1, The Koschitzky ed., 1st ed., Mosad Harav Kook, Jerusalem, xviii. ]
TEHILIM 2 - A IDEIA DE MASHI'AH E A RELAÇÃO COM O DIVINO
Já no Tehilim número 2, o tom é definido para enquadrar os Tehilim ao longo das linhas reais, com ênfase na ideia de que: a) a Divindade nomeou o rei; e b) o rei é o "Mashi'ah" ou ungido do divino:
(1) Por que as nações se reúnem, e os povos tramam coisas vãs; (2) reis da terra tomam sua posição, e regentes intrigam juntos contra o HaShem e contra o seu ungido? (3) “Quebremos as cordas de seu jugo, sacuda suas cordas de nós! "
E no mesmo Tehilim, este rei é descrito como referido pelo divino como מַלְכִּ֑י (Meu rei), que governa צִ֝יּ֗וֹן הַר־קׇדְשִֽׁי (Tzion e Minha montanha sagrada). A Divindade e o rei parecem inextricavelmente ligados. O rei Soberano é mostrado para endossar Seu rei terreno. Esta é uma inter-relação muito forte:
(7) Deixe-me falar sobre o decreto: o HaShem me disse: "Você é meu filho, Eu gerei você neste dia.
O rei proclama que a Divindade o chamou de “filho”, e tudo o que o rei precisar, a divindade lhe daria. A instituição, as credenciais e o poder da monarquia davídica foram, portanto, firmemente apresentadas como sancionados e ordenadas divinamente.
Nos trinta e nove [considerando que os Tehilim 1 e 2 são “introduções”] do Livro I, David é mencionado em quase todas as inscrições ou títulos, estabelecendo o tom inicial do governo real em toda sua glória e esplendor.
Tehilim 18 - O Rei justo
Tehilim 18 : 21 fala do rei, descrevendo sua justiça:
(21) O HaShem me recompensou de acordo com o meu mérito; Ele recompensou a justiça de minhas mãos;
O rei foi descrito como sendo recompensado por sua retidão e, portanto, por causa da justiça de suas mãos, o reino prosperaria. No momento, está tudo bem na terra porque "assim como vai o rei, vai o povo".
Tehilim 20 e 21
Mas esta imagem idílica de rei perfeito e nação perfeita, lentamente começa a se desfazer, conforme o Sefer Tehilim avança e se desenrola. Os Tehilim 20 e 21 são vistos como conectados um ao outro e falando de um 'antes e depois' numa batalha vitoriosa. No entanto, a glória foi conquistada a duras penas:
(2) Que o HaShem te responda na hora da angústia, o nome do Elohim de Iáacov o mantenha seguro.
(6) Grande é a sua glória por meio da Sua vitória; Você o dotou de esplendor e majestade.
(4) Que Ele receba todas as suas ofertas de Min'há, e aprove suas ofertas de Olah. Selah.
(7) Agora eu sei que o HaShem dará vitória ao Seu ungido, vai responder a ele de seu santuário celestial com as poderosas vitórias de Seu braço direito
Há vitória e o rei ainda são associada ao divino, pelo termo “meshiho” ("seu" ungido), mas a vitória não veio fácil. As rachaduras estão começando a aparecer na infalibilidade do rei, que agora requer alguma ajuda adicional.
Tehilim 45
O Tehilim 45 descreve um casamento real e uma rede de contatos, com a criação de laços diplomáticos e casamentos estrangeiros com nações ricas, necessários para aumentar o poder cada vez menor do rei:
(1) De Shlomo. Ó Elohim, dote o rei com Seus julgamentos, o filho do rei com a tua justiça; (2) para que ele possa julgar seu povo corretamente, Seus humildes, com justiça. (3) Deixe as montanhas produzirem bem-estar para as pessoas, as colinas, a recompensa da justiça. (4) Deixe-o defender os humildes entre o povo, entregar as pessoas necessitadas, e esmagar aqueles que os prejudicam.
Isso está muito longe do Tehilim 18, onde o rei declarou sua "justiça" quase impecável. Agora é evidente que o clima anterior da monarquia gloriosa está lentamente sendo corroído à medida que as canções progridem.
Tehilim 89
Na canção 89, a instituição da monarquia chega ao fundo do poço. A canção começa lembrando-nos de que a linhagem davídica era originalmente, considerada perpétua:
(3) Eu declaro: “Seu amor constante é confirmado para sempre; lá nos céus Você confirma a sua fidelidade.”
Mas então, dramaticamente, a monarquia é descrita como se desfazendo e como tendo sido rejeitada:
(39) No entanto, você rejeitou, rejeitou, e ficou furioso com o Seu ungido. (40) Você repudiou a aliança com Seu servo; Você arrastou a dignidade dele para o pó. (41) Você violou todas as suas defesas, destruiu suas fortalezas. (42) Todos os que passaram o saquearam; ele se tornou o alvo de seus vizinhos. (43) Você exaltou a mão direita de seus adversários, e fez todos os seus inimigos se alegrarem.
É aqui que o Livro III termina e implica um eixo em torno do qual, uma nova "teologia" começava a emergir.
Os livros IV e V foram uma resposta à queda da monarquia, conforme descrito no Tehilim 89.
Nos livros III e IV, David quase não é mencionado.
E no final do Livro II, lemos que “as rezas de David ben Ishai, terminaram”.
Tehilim 90 - Moshe
Então, no início do Livro IV, a canção 90, começa com uma rara referência a Moshe.
Foi neste ponto que a "nova teologia" começa, pois o povo agora tinha que retornar ao Judaísmo da pré-monarquia:
(1) Uma reza de Moshe, o homem do Elohim. Ó nosso senhor, Tu tens sido nosso refúgio em cada geração.
Aqui a divindade é descrita como מָע֣וֹן אַ֭תָּה o refúgio, ao qual os pobres e necessitados recorreriam, já que a instituição real, que no passado tinha a tarefa de cuidar do povo, não existe mais.
É feita referência a Moshe (e é a única canção que leva seu nome na inscrição) e ao Divino, lembrando ao povo, seu relacionamento original com a divindade, antes da monarquia.
O nome de Moshe é mencionado seis vezes no Livro IV dentro do corpo de outras canções.
Tehilim 93 a 99 - Reinos
Um tema dominante do Livro IV são os sete canções (93 - 99) de “Mal'hiot” (Entronização), onde a divindade foi descrita como o Rei. O rei humano não era mais a representação de “Mal'hut” = reino celestial (ideia de Soberania), mas seria apenas o Divino que seria o Soberano.
Tehilim 107
A Divindade como o rei
O livro V começa com a canção 107:
(1) “Louvado seja o HaShem, porque Ele é bom; Seu amor constante é eterno! ” (2) Assim, digam os remidos do HaShem: aqueles que Ele resgatou da adversidade,
A ideia de redenção agora era vista como vinda exclusivamente do Divino, sem a agência do rei.
Tehilim 113 a 118 - Halel egípcio
No Livro V, há também uma coleção de seis canções (113-118), conhecidas como o Halel Egípcio. Novamente, um retrocesso aos tempos pré-monárquicos anteriores, onde divindade desempenha um papel mais dominante, sem a intercessão de um rei.
Tehilim 119 - A centralidade da Torá
A canção 119 com seus 176 versos, domina o livro V. Foi uma canção relacionada à Torá, que a menciona vinte e cinco vezes. Isso também pode ser visto, como uma alusão ao centramento na Torá, após a monarquia. As pessoas agora poderiam se voltar e se concentrar mais na Torá e no Divino alcançado pelo estudo da Torá, em vez de primariamente, na monarquia.
Tehilim 144 - um reaparecimento de David
O Livro V contém 14 canções com referência a David. Havia tensões dentro da comunidade judaica antiga, com alguns membros felizes em ver o fim da monarquia, enquanto outros esperando por seu retorno. De qualquer forma, o tom monárquico é mais moderado do que nas seções anteriores do Sefer Tehilim. Assim, a canção 144 descreve um David mais fraco, sitiado na batalha e apelando ao Divino por ajuda. Já se foram os dias de glória monárquica.
sing a hymn to You with a ten-stringed harp,
E termina com uma referência às colheitas:
(13) Nossos depósitos estão cheios, fornecendo produtos de todos os tipos; nossos rebanhos somam milhares, até mesmo miríades, em nossos campos; (14) nosso gado é bem cuidado. Não há violação nem surtida, e sem pranto em nossas ruas. (15) Felizes as pessoas que o têm assim; feliz o povo cujo Elohim é o HaShem.
Isso é digno de nota porque o sucesso das colheitas era, nos primeiros tempos monárquicos, considerado totalmente dependente do rei encontrar favor aos olhos de Elohim.
O rei e a lei eram frequentemente comparados na cultura do Antigo Oriente Próximo. Talvez essa fusão da ideia de rei e da lei tenha sido mencionada nos primeiros dois Tehilim. O Tehilim 1 é uma canção cujo tema está na Torá, enquanto o Tehilim 2 é uma canção real. As duas entidades da Torá e do rei podem se sobrepor (o rei tinha que ter sua própria cópia da Torá, que carregaria consigo o tempo todo), mas ainda deveriam permanecer como duas entidades distintas. Por esta razão, era importante que a Torá fosse dada fora da terra e, portanto, não estivesse ligada a nenhum rei, para diferenciá-la das práticas do Antigo Oriente Próximo, onde as leis eram frequentemente relacionadas a reis específicos. Os limites entre a lei, o rei e o Divino no Antigo Oriente Próximo não eram tão claros. É, portanto, bem possível que mesmo no antigo Israel a fusão entre o rei e o divino nem sempre tenha sido totalmente incomum (como no caso das safras contando com a justiça do rei). Mas agora, à medida que avançamos para o fechamento do Sefer Tehilim, as declarações expressam que as colheitas dependem apenas da Divindade e não precisam da intercessão ou do mérito de um monarca.
Tehilim 145
O Tehilim denominado 'Ashrei' e o 'Pessukei Dzimrá' - Tehilim 145 (o "Ashrei") mostra como o rei David reconhecia a Divindade como 'seu rei':
(1) Uma canção de louvor. De David. Eu te exaltarei, meu Elo'ah e rei, e abençoarei seu nome para todo o sempre.
Não se esperaria mais que do monarca viesse a concessão de misericórdia aos fracos no reino, porque “a Divindade é boa para todos” (טוֹב־ה לַכֹּ֑ל) e “o Divino sustenta todos os que tropeçam” (סוֹמֵ֣ךְ ה לְכׇל־הַנֹּפְלִ֑ים). E “Os olhos de todos olham para Ti com expectativa” (עֵֽינֵי־כֹ֭ל אֵלֶ֣יךָ יְשַׂבֵּ֑רוּ). As pessoas agora olhariam apenas para o Elohim com expectativa, não para o rei.
E “Você lhes dá o alimento quando é devido” (וְאַתָּ֤ה נֽוֹתֵן־לָהֶ֖ם אֶת־אׇכְלָ֣ם בְּעִתּֽוֹ) enfatizando que seria a Divindade quem daria qualquer coisa, não o rei.
Contraste com o que foi dito antes, no Tehilim 2, que a colheita abundante era resultado da justiça do rei ou simplesmente por meio do rei solicitar algo do Divino, שְׁאַ֤ל מִמֶּ֗נִּי וְאֶתְּנָ֣ה (Peça e eu darei).
Tehilim 146
De 'filho de Elohim' a 'filho do homem'
O Tehilim 146 expressa todas as ideias dessa "nova teologia" numa frase:
(3) Não coloque sua confiança no grande, no homem mortal que não pode salvar.
Esta última canção se refere ao rei, agora, como o “filho do homem” (בֶן־אָדָ֓ם). Perceba o forte contraste desde o Tehilim 2, que considerava o rei como o “filho do Divino” (בְּנִ֥י אַ֑תָּה).
Agora o rei seria redundante e descrito como:
(4) Sua respiração cessa; ele retorna ao pó; naquele dia, seus planos dão em nada.
A canção continua com uma descrição divina como:
(7) que garante justiça para aqueles que são injustiçados, dá comida aos famintos. O HaShem liberta os prisioneiros;
Essas funções eram vistas anteriormente como "noblesse oblige" e a tendência comportamental do monarca.
O Tehilim 72 falava sobre como o rei alguém que “salva os necessitados” (כִּֽי־יַ֭צִּיל אֶבְי֣וֹן) e, “cuida dos pobres necessitados” (יָ֭חֹס עַל־דַּ֣ל וְאֶבְי֑וֹן).
No entanto, no final do Sefer Tehilim, essa obrigação social muda do rei mortal para a Divindade, que agora se torna o único “guardião do estrangeiro, órfão e viúva” (שֹׁ֘מֵ֤ר אֶת־גֵּרִ֗ים יָת֣וֹם וְאַלְמָנָ֣ה).
Agora seria a Divindade quem realizaria essas funções.
Tehilim 149 - Uma abordagem melhor
O Tehilim149 sugere que, sem dependência de um rei mortal, entraríamos numa fase nova e mais pura da expressão da religião, poeticamente dito como "cantando uma nova canção" (שִׁ֣ירוּ לַֽ֭ה שִׁ֣יר חָדָ֑שׁ) e o povo israelita seria convidado a "regozijarem-se em seu Rei", (בְּנֵֽי ־צִ֝יּ֗וֹן יָגִ֥ילוּ בְמַלְכָּֽם).
E mesmo a Divindade passa ser descrito como saboreando, por assim dizer, Seu novo relacionamento com Israel e “desejando Seu povo” (כִּֽי־רוֹצֶ֣ה ה בְּעַמּ֑וֹ).
Tehilim 150 - Louvor ao Divino não é louvor ao governo
O Tehilim 150 final é simplesmente uma efusão de louvor, geralmente reservado para o cargo de rei, mas agora dirigido exclusivamente ao Divino, com treze expressões de "Halelu-Iah", em apenas 6 sentenças.
Essa é a trajetória da instituição real - da supremacia humana chegaria a seu final, retornando ao pó - conforme retratada pelo teor geral das canções à medida que se avança através dos livros.
O papel do monarca deveria ser gradualmente substituído pela Divindade como Rei.
Enquanto o movimento de Tehilim do início ao fim do livro, é do lamento ao louvor ao Divino - há um movimento simultâneo na direção oposta, do rei glorioso à perda da realeza humana e uma mudança do foco para Elohim, já que o livro termina com os seis canções "Halelu-Iah", que mais tarde formaram o Pessukei D'zimrá.
O movimento em direção ao louvor divino coincide com o movimento para longe do rei e em direção a ideia de considerar a Divindade como Rei.
O Pessukei D'zimrá, e o término da instituição do Resh Galuta
Depois de compreender que os Tehilim foram uma reação à remoção do papel dominante da monarquia e uma promoção para a restauração de uma "teologia", na qual a Divindade teria ênfase, sem a necessidade de uma monarquia como representante (como teria servido bem às comunidades do período pós-Templo), podemos dar o próximo passo, rumo a outra forma de monarquia, que apareceu nos tempos talmúdicos e pós-talmúdicos - o cargo de Resh Galuta.
A história do ofício de Reish Galuta
Resh Galuta (Exilarca ou Chefe do Exílio) foi o título conferido ao líder dos judeus da Babilônia, desde o exílio da Babilônia (587 antes da era comum).
Este ofício foi reconhecido não apenas pelos judeus, mas também pelos impérios da Babilônia e depois da Pérsia. Os líderes que ocuparam essas posições, alegaram descendência da linhagem real davídica.
De acordo com o Midrash Seder Olam Zuta, que foi uma crônica anônima do século IX, o primeiro Resh Galuta teria sido o rei Iehoiakim (609-598 antes da era comum), filho de Ioshiahu e o décimo oitavo rei de Iehudá.
Isso implica que a instituição de Resh Galuta teria começado enquanto o Templo ainda estava de pé.
O Midrash Seder Olam Zuta, lida com trinta e nove gerações de Rashei Galu'iot.
O Talmud [Sanhedrin 5a] menciona que a autoridade judaica na Babilônia era chamada de Resh Galuta, enquanto a autoridade em Israel era chamada de Nassí (Príncipe).
O Resh Galuta, no entanto, é descrito como governando com força e tendo muito mais poder do que o Nassí.
Nos tempos pós-talmúdicos, entre cerca de 715 e 795, houve uma disputa entre dois candidatos, os irmãos Anan e Hanania ben David, pelo cargo de Resh Galuta.
Anan não teve sucesso e se declarou anti-Exilarca. Ele teria sido preso e, talvez como vingança, fundou o Judaísmo Mikraí (caraíta, que desconsidera todo o conteúdo do Talmud e a tradição oral, baseando-se apenas nas próprias interpretações do texto da Torá).
Isso teria criado uma divisão na chamada "cadeia hereditária" do Resh Galuta colocando "rabanitas versus mikraim", cada um afirmando que, seus líderes é que eram a autêntica linhagem real.
Dentro da linha de sucessão dos chamados rabanitas, quando então o Rav Hai Gaon morreu em 1038, não houve mais, um candidato bem-sucedido para o papel de Resh Galuta, então Hizkiahu foi nomeado para preencher o papel de Gaon e Resh Gaulta.
Esse "acordo" teria durado apenas dois anos, pois então Hizkiahu foi preso. Assim, embora existam algumas referências esparsas a um Resh Galuta, em vários pontos posteriores da história judaica, 1040 marcou o fim oficial do cargo real do Resh Galuta.
A percepção das pessoas sobre o Resh Galuta
O cargo de Resh Galuta nem sempre era visto de maneira favorável. O fato de que as autoridades não judaicas aceitaram, interagiram e às vezes até pressionaram o processo de nomeação do Resh Galuta também não ajudava em nada. O Resh Galuta era considerado elevado, acima da população vista como subalterna e, de acordo com o Talmud [ Shabat 58a], usava emblemas distintos em suas roupas.
Em outra fonte [Suka 31a], uma mulher reclamou que o Resh Galuta e os estudiosos de sua comitiva haviam roubado sua Sucá e celebrado nela, em vez que construírem a própria.
Em outro incidente [Eruvin 25b: 10-11], um Resh Galuta foi mencionado como tendo um grande pavilhão de banquetes em seu pomar, e isso criou certos desafios em relação ao transporte para fora de um Eruv (limite para transporte de objetos no Shabat).
Outro Resh Galuta teria tocado música em sua casa durante o dia e a noite [Meguila 74b] e ainda outro, chamado Nehemiah, seria alguém tão excêntrico que se vestia inteiramente de seda. [ Shabat 20b].
Frequentemente, o Resh Galuta também servia como principal coletor de impostos da população judaica no reino e, em uma ocasião, disseram sobre um Resh Galuta que havia coletado tantos grãos a ponto de preencher “40 campos quadrados”.
Uma das tarefas mais importantes do Resh Galuta era nomear o juiz. O Talmud [Sanhedrin 5a] fala da imunidade do juiz, que julgasse de modo errôneo, em virtude do fato de ter sido nomeado pelo Resh Galuta.
Às vezes, o Resh Galuta até governava, não de acordo com a lei judaica, mas de acordo com a lei Persa [Bava Kama 55a e 58b].
Avraham Zacuto em seu Iuhassin, descreve cerimônias elaboradas, marcando em detalhes, a instalação do Resh Galuta.
Por volta do século VI, o Resh Galuta babilônico chamado, Mar Zutra II, rebelou-se contra o rei Kavad I e estabeleceu uma espécie de "cidade-estado" judaica, em Mahoza. No entanto, pouco tempo depois, o rei capturou Mar Zutra e o crucificou.
IEKUM PURKAN
Até hoje, nas sinagogas Ashkenazi, uma reza conhecida como Iehum Purkan, ainda é recitada. Esta era a reza para o Resh Guluta, logo após a leitura da Torá. Esta reza, no entanto, não é recitada por Sefaradim (que agem sem influência da Hassidut Ashkenazi).
Eloheinu Mele'h haOlam
O Rambam determinou que, a respeito do que se transmitiu no Talmud sobre o Resh Galuta, se aprende que ele teria o poder absoluto, como o poder de um rei e ele poderia por isso governar sobre o povo, que o povo gostasse ou não:
רָאשֵׁי גָּלֻיּוֹת שֶׁבְּבָבֶל בִּמְקוֹם מֶלֶךְ הֵן עוֹמְדִים. וְיֵשׁ לָהֶן לִרְדּוֹת אֶת יִשְׂרָאֵל בְּכָל מָקוֹם וְלָדוּן עֲלֵיהֶן בֵּין רָצוּ בֵּין לֹא רָצוּ
Os chefes dos exilados na Babilônia no lugar do rei estão de pé. E eles têm que ir até Israel em todos os lugares e discuti-los, quer desejem isso ou não.
Quando a era da realeza original terminou, após a queda de Jerusalém em 587, a mudança de foco se afasta do rei e passa a ser direcionada ao Divino, agora pensado como Rei.
Não teria sido por acaso que, na época de Ezrah e seu "Anshei Kenesset haGuedolah" (o clube, chamado de "Homens da Grande Assembleia"), as rezas começaram a ser formalizadas, ao longo da produção textual do Sidur, tal qual conhecemos hoje.
Como parte da nova liturgia, após a destruição do Templo, as Berahot (bênçãos) foram estabelecidas com uma fórmula muito específica:
ברוך אתה ה׳ אלקינו מלך העולם
Como vimos na trajetória dos Tehilim, o personagem do monarca foi gradualmente reduzido para dar lugar ao Elohim - assim também as berahot elaboradas depois, refletiram aquela ênfase na realeza de Elohim, que passa a ser chamado de, o “Rei do mundo”.
Para aqueles que estavam perturbados com a perda da monarquia, os Tehilim e as berahot, teriam trazido ideias consoladoras, porque se pensava que "ainda havia um rei", só que seria um rei maior, o rei do mundo.
E para aqueles que não ficaram chateados com o término da monarquia (já que muitos reis de Iehudá de fato, não foram pessoas dignas, nem como seres humanos e muito menos para o exercício do cargo), isso teria sido considerado, um retorno a um monoteísmo mais "Mosaico", por assim dizer, um que imaginavam menos "contaminado", pela ideia da necessidade de intercessão real, onde a figura do rei tivesse sido removida, da associação de "filho do Divino” - בְּנִ֥י אַ֑תָּה (Tehilim 2).
A linguagem do Pessukei D'zimrá
A inclusão dos Pessukei D'zimrá no Sidur, precisamente no final do período Gueônico, quando o cargo de Resh Galuta foi dissolvido, teria desempenhado uma função semelhante:
Não havia mais um ser humano exercendo o cargo de "rei", mas ainda havia Elohim, o Rei do mundo.
E a mesma seção de Tehilim marcando a “transferência” original de um rei para outro, foi usada para marcar a transição do Resh Galuta, voltando a reconhecer que o Elohim é o único rei de fato.
Cada uma das seis canções (145-150) do Pessukei D'zimrá (que também são as últimas seis canções no Sefer Tehilim) contém numerosas referências a Divindade cumprindo a função, do que antes era a atribuído ao rei, como já mencionado.
É significativo notar que o Rambam se refere a essas seis canções, como a essência de Pessukei D'zimrá.
[Mishneh Torah, Hil'hot Tefilá 7 : 12]
Conclusão
Pessukei D'zimrá foi frequentemente chamado de “poda” (“זמר”).
Isso geralmente é interpretado didaticamente, como uma “preparação” (eliminando pensamentos estranhos) para as seções importantes do rito do Shemá e da reza chamada Shemoneh Esreh, que são realizados logo depois.
Moshe Ibn Guigatila (século XI) teve uma interpretação diferente, dizendo que os interpretava como sendo cuidadosamente selecionados, ou “podados” por um “editor”.
Talvez possamos adicionar outra interpretação: A “poda” seria simplesmente e talvez, literalmente, a “poda” da ideia da instituição de governo humano, como a monarquia, e a propagação de uma concepção de uma espécie de "restauração" (imaginada) do Judaísmo pré-monárquico clássico, sem a necessidade de intercessão real ou de "pessoas da realeza".
Talvez tenham sido esses versos (Pessukei) que refletiriam essa separação (D'zimrá). A questão interessante para a atualidade, seria notar que as concepções de modelos correspondentes do Judaísmo chamado "monárquico", em suas várias formas de veneração extrema de figuras rabínicas, infringem na realidade esses mesmos limites e inspirações imbuídos em nossa liturgia.
